16 de dezembro de 2011

TRAGÉDIA NO CIRCO



Naquela noite, da época recuada de 177, o “concilium” de Lião regurgitava de povo.
Não se tratava de nenhuma das assembléias tradicionais da Gália, junto ao altar do
Imperador, e sim de compacto ajuntamento.
Marco Aurélio reinava, piedoso, e. Embora não houvesse lavrado qualquer rescrito em
prejuízo maior dos cristãos, permitira se aplicassem na cidade, com o máximo rigor, todas as
leis existentes contra eles.
A matança, por isso, perdurava, terrível.
Ninguém examinava necessidades ou condições. Mulheres e crianças, velhos e doente,
tanto quanto homens válidos e personalidades prestigiosas, que se declarassem fiéis ao
Nazareno, eram detidos, torturados e eliminados sumariamente.
Através do espesso casario, a montante da confluência do Ródano e do Saône,
multiplicavam-se prisões, e no sopé da encosta, mais tarde conhecida como colina de
Fourviére, improvisara-se grande circo, levantando-se altas paliçadas em torno de enorme
arena.
As pessoas representativas do mundo lionês eram sacrificadas no lar ou barbaramente
espancadas no campo, enviando-se os desfavorecidos da fortuna, inclusive grande massa
de escravos, ao regozijo público.
As feras pareciam agora entorpecidas, após massacrarem milhares de vítimas, nas
mandíbulas sanguinolentas. Em razão disso, inventavam-se tormentos novos.
Verdugos inconscientes ideavam estranhos suplícios.
Senhoras cultas e meninas ingênuas eram desrespeitadas antes que lhes decepassem a
cabeça, anciães indefesos viam-se chicoteados até a morte. Meninos apartados do reduto
familiar eram vendidos a mercadores em trânsito, para servirem de alimárias domésticas em
províncias distantes, e nobres senhores tombavam assassinados nas próprias vinhas.
Mais de vinte mil pessoas já haviam sido mortas.

Naquela noite, a que acima nos referimos, anunciou-se para o dia seguinte a chegada de
Lúcio Galo, famoso cabo de guerra, que desfrutava atenções especiais do Imperador por se
haver distinguido contra a usurpação do general Avídio Cássio, e que se inclinava agora a
merecido repouso.
Imaginaram-se, para logo, comemorações a caráter.
Por esse motivo, enquanto lá fora se acotovelavam gladiadores e jograis, o patrício Álcio
Plancus, que se dizia descendente do fundador da cidade, presidia a reunião, a pedido do
Propretor, programando os festejos.
- Além das saudações, diante dos carros que chegarão de Viena – dizia, algo tocado pelo
vinho abundante -, é preciso que o circo nos dê alguma cena de exceção... O lutador Setímio
poderia arregimentar os melhores homens; contudo, não bastaria renovar o quadro de
atletas...
- A equipe de dançarinas nunca esteve melhor – aventou Caio Marcelino, antigo legionário
da Bretanha que se enriquecera no saque.
- Sim, sim... – concordou Álcio – instruiremos Musônia para que os bailados permaneçam à
altura...
- Providenciaremos um encontro de auroques – lembrou Pérsio Níger.
- Auroques! Auroques!... – clamou a turba em aprovação.
- Excelente lembrança! – falou Plancus em voz mais alta – mas, em consideração ao
visitante, é imperioso acrescentar alguma novidade que Roma não conheça...
Um grito horrível nasceu da assembléia;
- Cristãos às feras! cristãos às feras!
Asserenado o vozerio, tornou o chefe do conselho:
- Isso não constitui novidade! E há circunstâncias desfavoráveis. Os leões recémchegados
da África estão preguiçosos...
Sorriu com malícia e chasqueou:
- Claro que surpreenderam, nos últimos dias, tentações e viandas que o própio Lúculo jamais
encontrou no conforto de sua casa...
Depois das gargalhadas gerais, Álcio continuou, irônico:
- Ouvi, porém, alguns companheiros, ainda hoje, e apresentaremos um plano que espero
resulte certo. Poderíamos reunir, nesta noite, aproximadamente mil crianças e mulheres
cristãs, guardando-as nos cárceres... E, amanhã, coroando as homenagens, ajuntá-las-emos
na arena, molhada de resinas e devidamente cercada de farpas embebidas em óleo,
deixando apenas passagem estreita para a liberação das mais fortes. Depois de mostradas
festivamente em público, incendiaremos toda a área, deitando sobre elas os velhos cavalos
que já não sirvam aos nossos jogos... Realmente, as chamas e as patas dos animais
formarão muitos lances inéditos...
- Muito bem! Muito bem! – reuniu a multidão, de ponta a ponta do átrio.
- Urge o tempo – gritou Plancus – e precisamos do concurso de todos... Não possuímos
guardas suficientes.
E erguendo ainda mais o tom de voz:
- Levante a mão direita quem esteja disposto a cooperar.
Centenas de circunstantes, incluindo mulheres robustas, mostraram destra ao alto,
aplaudindo em delírio.
Encorajado pelo entusiasmo geral, e desejando distribuir a tarefa com todos os voluntários, o
dirigente da noite enunciou, sarcástico e inflexível:
- Cada um de nós traga um... Essas pragas jazem escondidas por toda a parte... Caçálas
e exterminá-las é o serviço da hora...
Durante a noite inteira, mais de mil pessoas, ávidas de crueldade, vasculharam residências
humildes e, no dia subsequente, ao Sol vivo da tarde, largas filas de mulheres e criancinhas,
em gritos e lágrimas, no fim de soberbo espetáculo, encontraram a morte, queimadas nas
chamas alteadas ao sopro do vento, ou despedaçadas pelos cavalos em correria.

Quase dezoito séculos passaram sobre o tenebroso acontecimento... Entretanto, a justiça da
Lei, através da reencarnação, reaproximou todos os responsáveis, que, em diversas
posições de idade física, se reuniram de novo para dolorosa expiação, a 17 de dezembro de
1961, na cidade brasileira de Niterói, em comovedora tragédia num circo.

Fonte: Livro Crônicas de Além Túmulo-Humberto de Campos-Psicografia -Chico Xavier.

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