Há algum tempo, em visita a um núcleo de iniciantes da Doutrina Espírita, testemunhamos lamentável engano de interpretação doutrinária. Sempre entendemos que uma tribuna espírita, ou mesmo simples reunião para exame ou debate de temas evangélico-espíritas não podem ser franqueadas a pessoas desconhecedoras do assunto a tratar, ou àqueles que têm preferência por veicular ideias pessoais. Já várias vezes temos destacado, com base nos próprios ensinamentos da filosofia espírita, que opiniões pessoais absolutamente não servem à Doutrina que todos desejamos seguir. O Espiritismo é revelação transcendente, ciência celeste que nos convida a renovar nossos cabedais morais e intelectuais, a cultivar o bom senso, meditar profundamente, para reconhecer que essa filosofia, pelo Alto revelada, traz em seu bojo sutilezas que convém serem conhecidas antes que venhamos a apresentar-nos como expositores dos seus princípios.
Frequentemente, no entanto, assistimos a oratórias ditas evangélicas ou espíritas que mais comprometem a causa que se pretende divulgar. Temos tido notícias também de pessoas que se confundem e decepcionam diante de tais oratórias, pessoas que a elas acorrem a fim de se elucidarem, edificando-se na fé que julgam salvadora. Esse mal toma proporções mais graves quando os ouvintes são aprendizes jovens que procuram elucidação doutrinária com o fito de se orientarem seguramente para a vida, pois uma orientação falsa, baseada em sofismas ou opiniões pessoais, quer dos pontos evangélicos ou da filosofia espírita, pode até mesmo afastar da boa rota corações que anseiam pelos ensinamentos da Verdade.
O caso em pauta foi que certo adepto do Espiritismo, discorrendo sobre a crucificação de Jesus, disse a um grupo de jovens iniciantes que a morte do Mestre assim se deu devido à necessidade de um resgate; que Jesus devia à lei de Deus aquela situação, pois que era a reencarnação de Moisés e este, no seu tempo, procedera de molde a ter de expiar o próprio passado nos braços do martírio. Não fora a presença de espírito de um participante da reunião, que corajosamente protestou, e o absurdo seria consagrado como lição a um grupo de iniciantes da filosofia espírita. Diante disso, concluímos que faltou ao expositor o mais comezinho conhecimento evangélico-espírita, ao passo que sobraram os sofismas sobre a lei da reencarnação. Todos os ensinamentos doutrinários que temos colhido desautorizam a declarar que Jesus tivesse tido encarnações anteriores e ainda menos que tivesse agido de forma a sofrer a expiação do suplício na cruz.
O adiantamento espiritual de Jesus perde-se na noite dos tempos, segundo reza a revelação espírita autêntica, racional, além do que afirma o Evangelho. Aquele sacrifício ele o fez voluntariamente, em obediência a uma necessidade prevista pelos planos divinos, para o bem dos destinos do planeta. Vindo à Terra, Jesus sabia que enfrentaria terríveis sacrifícios, o martírio na cruz inclusive; mas não vacilou, deu a própria vida espontaneamente, e isso mesmo ele afirmou diante de uma assembleia a que indivíduos comuns também estavam presentes:
- “O Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a reassumir. Tal é a ordem que recebi de meu Pai” (João, cap. X, vv. 17 e 18).
Pode-se mesmo dizer que os capítulos 10, 14, 15, 16 e 17 de João apresentam a individualidade de Jesus de tal maneira que, a aceitar o Evangelho, já não poderemos crer que ele fosse diferente. De outra forma, o alvo da vinda de Jesus a este mundo não foi, certamente, o sacrifício na cruz, mas a doutrina que ele trazia do Alto para doar aos homens, doutrina que ele repetia não ser sua e sim do Pai, que o enviou.
O que redime a nossa personalidade não é, certamente, o fato de Jesus haver “expiado os nossos pecados no martírio da cruz”, porquanto ele próprio afirmou que “a cada um seria dado segundo as suas obras”, mas a aceitação e consequente prática da doutrina por ele exposta e praticada. O sacrifício na cruz decorreu, é certo, da maldade e da ignorância dos homens, que não compreenderam Jesus, mas jamais da necessidade de ele sofrê-Io para se libertar de pecados anteriormente cometidos.
Nos primeiros versículos do capítulo I de João vemos ainda que, quando se iniciou a criação da Terra, Jesus-Cristo já era unificado com o Pai:
“Ele estava, no princípio, com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele; nada do que foi feito, foi feito sem ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandeceu nas trevas, mas as trevas não a compreenderam.”
E, de fato, as trevas não compreenderam a vida e a luz que havia nele para nos serem transmitidas, pois, dois milênios após a sua passagem pela Terra ainda o confundem com João Batista. Sim, porque João Batista, segundo as palavras do próprio Mestre e a apreciação da Doutrina dos Espíritos, é que foi a reencarnação do profeta Elias. Quando encarnado na pessoa de Elias, este mandara decapitar setenta sacerdotes do terrível deus Baal, a fim de garantir a ideia da existência do Deus Único e Verdadeiro. Um compromisso grave, portanto, perante a lei de Deus, passível de punição, embora objetivasse a estabilização da idéia do verdadeiro Deus. Oitocentos anos depois, Elias reencarna na pessoa de João Batista e é decapitado durante um festim real de Herodes Ântipas. É um ensinamento lógico, racional, mesmo belo, de fácil aceitação, que encontramos claramente exposto no Evangelho. A cena no Monte Tabor, em que vemos a materialização de Moisés e Elias, ao lado do próprio Jesus e dos seus apóstolos Pedro, Tiago e João, é mais um desmentido categórico dessa estranha afirmativa de que Jesus e Moisés fossem o mesmo.
O estudo fiel e dedicado dos Evangelhos, portanto, e também da Doutrina dos Espíritos, é indispensável àquele que deseje prestar sua colaboração. Não se aprendem tais noções em um ou dois anos, ou apenas através de intuições ou, ainda, por ouvir falar a seu respeito. São aquisições difíceis, que requerem perseverança e muito amor, humildade e raciocínio isento de personalismo e conveniências. Há, sim, sutilezas importantes, detalhes significativos, dos quais somente após algum tempo de dedicação nos poderemos apossar. Teremos que nos renovar para a Doutrina: aprimorar a nossa moral, educar a mente e o coração, objetivando o Bem; examiná-Ia, analisá-Ia e aceitá-Ia ou rejeitá-Ia, mas jamais deturpá-Ia com as nossas opiniões pessoais, sempre prejudicadas.
Convém, pois, que alijemos as ideias particulares, os preconceitos, os sofismas que nos possam levar a interpretações inverídicas diante de corações sequiosos de conhecimentos espirituais, dado que o compromisso de levar a palavra da verdade ao público é grave e poderemos passar pelo desgosto de, um dia, reconhecermos que deturpamos os ensinamentos que do Alto recebemos para a nossa própria edificação, para edificação do próximo e “para maior glória de Deus”.
Frederico Francisco
Reformador (FEB) Dezembro 1972